quarta-feira, 24 de agosto de 2011

REPORTAGEM: VENENO DE JARARACA NO COMBATE A DOENÇAS

Veneno da jararaca pode combater doenças neurodegenerativas e tromboses

O Globo, 24-08-2011


Um veneno, na dose e composição certas, pode ser um santo remédio. Prova disso é a peçonha da jararaca-da-mata (Bothrops jararaca), serpente que responde por grande parte dos ataques de cobras venenosas registrados no país. Em 1948, o cientista brasileiro Maurício Oscar da Rocha e Silva isolou dele a bradicinina.

Responsável pelo choque circulatório provocado pelo veneno, o composto acabou servindo de base para o farmacologista Sérgio Henrique Ferreira desenvolver, já nos anos 60, o Captopril, medicamento largamente utilizado até hoje para tratamento da hipertensão e de alguns casos de insuficiência cardíaca. Agora, dois grupos de cientistas, um da USP e outro da UFRJ, estudam outras propriedades da peçonha, com possíveis aplicações contra doenças neurodegenerativas e trombose.

Henning Ulrich, do Instituto de Química da USP, pesquisa as propriedades neurodegenerativas da bradicinina. Em experimentos com animais, verificou que a substância estimula a neurogênese, isto é, a formação de novos neurônios. A bradicinina também ajudaria a proteger neurônios já existentes de morte celular provocada por males como Parkinson e por isquemias (falta de suprimento de sangue para tecidos vivos).

Segundo o professor da USP, esses efeitos fazem do composto um promissor ponto de partida para a criação de novos medicamentos para o tratamento de doenças degenerativas do sistema nervoso e de lesões provocadas por derrames.

- No momento ainda estamos na fase de pesquisa básica, mas nossos ensaios já apontam possíveis novos usos importantes da bradicinina - conta Ulrich, que apresenta os resultados de suas pesquisas em palestra amanhã na 26ª Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), no Centro de Convenções Sul América, no Centro.

- Em animais em que induzimos o desenvolvimento do mal de Parkinson, o composto reverteu os sintomas, como as falhas motoras. Também já fizemos avaliação de como a substância promove a criação de novos neurônios, podendo assim ser usada para atacar as perdas causadas por doenças neurodegenerativas. E, por fim, em modelos de isquemia a bradicinina protegeu os neurônios em volta da lesão da morte celular, limitando sua área.

Ainda de acordo com Ulrich, mesmo o Captopril, que age bloqueando a ação de um enzima que degrada a bradicinina, aumentando assim a concentração da substância no organismo, mostrou-se eficiente em alguns casos.

- Isso mostra que não precisamos nem desenvolver um novo composto, apenas dar novos usos para o remédio - destaca. - Já existem compostos sintéticos que têm os mesmos efeitos que ela mas são mais estáveis, pois a bradicinina tem a limitação de ser degradada naturalmente.

Ulrich pretende continuar seus estudos sobre a substância, avaliando seus efeitos em outros modelos animais de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Huntington, e em isquemias in vivo para publicação de artigo no periódico "Journal of Neurosciences".

Já Luciana Wermelinger, aluna de doutorado em química biológica da UFRJ, participa de pesquisas com duas outras substâncias também isoladas do veneno da jararaca que podem substituir os atuais medicamentos usados na prevenção de tromboses, que apresentam muitos efeitos colaterais. Da família das chamadas desintegrinas, as moléculas jarastatina e jararacina mostraram-se potentes inibidoras da formação dos trombos, coágulos de sangue no interior dos vasos sanguíneos. Os resultados do estudo também serão apresentados na reunião da FeSBE.

- A jarastatina e a jararacina impedem a agregação das plaquetas que participam da formação desses trombos, que normalmente servem para conter sangramentos - diz Luciana, integrante de equipe coordenada pela professora Lina Zingali, do Instituto de Bioquímca Médica da UFRJ, responsável pela pesquisa.

Luciana, no entanto, ressalta que a pesquisa ainda está em fase muito inicial, tendo sido realizados testes apenas em amostras de sangue humano. Só a partir de agora começarão a ser feitos estudos com animais para depois terem início eventuais testes clínicos.

- Não sabemos, por exemplo, quais seriam as doses toleráveis das substâncias para uso humano nem há dados sobre possíveis efeitos colaterais - admite ela. - Por isso, é muito difícil dar um prazo de quando teremos um medicamento moldado a partir dessas substâncias.

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